UM
OLHAR PARA O PASSADO
Por Profa. Aparecida Araujo
Toni Morrison. Ganhadora do Prêmio Nobel
de Literatura em 1993, do Prêmio Pulitzer com a obra Beloved (Amada) em 1988 está às vésperas de ser celebrada mais uma
vez com o lançamento de seu nono romance, A
Mercy. No entanto ainda vale a pena lembrar de seu segundo romance, Sula, pois o primeiro, O olho mais azul, nem precisa de
comentário; foi o que a levou ao sucesso e o anterior a levou ao reconhecimento.
Suas obras pós-modernistas ao
relatar a vida dos negros americanos no início de século XX, resgatam suas
aflições, medos, sofrimentos e os fantasmas desses que outrora foram
marginalizados e que agora buscam sua identidade para alcançar sua posição no
centro de um mundo capitalista que os rejeita, ou pelo menos, fazer com que o
mundo periférico obtenha seu valor.
Em capítulos fragmentados em anos,
como em um relatório histórico, em Sula,
Morrison narra a história de duas garotas, Sula e Nel que, na infância, são
mais amigas que irmãs.
Na parte I há uma pequena descrição
do local onde os fatos acontecem: As meninas moram acima do vale de Medallion
(Ohio) na cidade de Botton (que significa fundo).
Local designado para os negros como forma de pagamento por anos de trabalho
pesado. Era um lugar rejeitado pelos brancos por estar no alto das montanhas,
mas para convencer os negros a aceitar um pedaço de terra no local, chamavam-no
de “Fundo do céu”, pois, certamente, estaria mais próximo de Deus. Idéia que
não chamava a atenção dos negros por estarem preocupados demais com as coisas
terrenas. A partir daí seguem-se as datas e o desenrolar da história que nos impressiona
em várias passagens nas quais personagens que deveriam transmitir valores, agem
com ignomínia e frialdade.Não como os judeus, por exemplo, que mesmo sendo
massacrados pelo mundo inteiro, mantiveram-se unidos, esforçando-se para manter
suas tradições onde quer que estivessem. Sula apresenta personagens vivendo em
comunidade, mas separadas pela individualização de cada dor.
1919. Shadrack, um veterano da Segunda Guerra Mundial,
institui o Dia Nacional do Suicídio por motivo de viver assombrado pela
expectativa da morte. Qualquer que quisesse suicidar-se ou matar outra pessoa
somente poderia fazê-lo nesta data (3 de janeiro), pois todos os outros dias
seriam de segurança e liberdade.
1920. Helene e sua filha Nel saem da
cidade pela primeira vez para visitar sua avó que está prestes a falecer, no
entanto chegam tarde demais. Voltam para Medallion aborrecidas e ultrajadas
porque nunca passaram pela situação de ter de usar o último vagão do trem,
reservados para negros, e de não poder usar os banheiros das estações. Para Nel
aquela fora a primeira e provavelmente a última viagem de sua vida, mas que lhe
trouxera uma grande experiência, embora perigosa.
1921. Sula morava com sua avó, Eva, que apesar de ter
uma única perna conseguia cuidar da vida de todos da região. Fora casada com um
alcoólatra e mulherengo que a abandonou com seus três filhos. Ela, por não
conseguir criar os filhos sozinha, apesar da ajuda que recebia de vizinhos e
patrões, fugiu por alguns longos meses. Quando retornou, conseguiu pagar a quem
cuidara de seus filhos, comprou uma casa, alugou os quartos que sobraram e
passou a viver dessa renda. No entanto retornou sem uma perna. As Peaces (Eva e
suas filhas) amavam todos os homens da vila, por esse motivo Sula tinha uma boa
impressão da vida sexual; diferente de suas amigas cujas mães nem gostavam de
sua companhia. Eva também tinha um filho que fora incendiado por ela mesma
quando percebeu o quanto ele era covarde, então quis dar-lhe uma morte de
homem.
1922. Sula
e Nel estavam com doze anos de idade e chamavam atenção dos homens. Embora
viessem de famílias completamente diferentes, estavam sempre juntas, pois assim
encontravam conforto e força para enfrentar qualquer situação. Guardavam muitos
segredos: certa vez, ao brincarem nas águas de um rio, Sula acidentalmente
matou um menino, mas a cidade nunca descobriu o responsável. Talvez o
atormentado Shadrack tivesse visto, pois morava próximo do local do acidente, no
entanto nunca houve um comentário.
1923. Hannah (a filha mais velha de Eva), ao
descobrir o motivo pelo qual sua mãe matara seu irmão e que ela não amava as
filhas como ao único filho, ateou fogo em si mesma e mesmo sendo impedida pela
mãe, não resistiu e morreu. Eva foi salva por um vizinho a quem amaldiçoou.
Parte II
1937. Sula retorna a Medallion, após alguns anos,
como se fora uma atriz. Discute com sua avó sobre suas falhas e no dia seguinte
envia sua avó a um asilo mal equipado. Ao reencontrar Nel, relembram o passado
e até cantam juntas. Nel sente-se tão feliz que seu marido e filhos percebem
como o reencontro lhe fizera bem. Sula é repreendida por enviar sua avó ao
asilo, mas atribui a atitude insensata pelo fato de ter estado sem a presença
de Nel. Resolve então usar parte da pensão da avó para enviar ao asilo. O
marido de Nel, Jude, percebe que Sula é uma mulher provocadora de homens, abandona
Nel que fica desapontada.
1939. Sula é censurada por toda a vizinhança devido a
seu modo de vida: é acusada de sair com homens brancos, não dá atenção aos
vizinhos e não precisa de ninguém. Torna-se o bode expiatório de cidade que
muda de hábitos para não se comparar a ela.
1940. Sula está sem dinheiro e doente. Nel, sem
ressentimentos, oferece ajuda e companhia a Sula, mas questiona como Sula pôde
ficar só depois de ter ficado com seu marido. Sula alega que toda mulher negra
acaba ficando sozinha, no entanto cada uma de uma forma diferente. Quanto ao
marido de Nel, se ele a deixara fora porque ela era a mais amada.
1941. Sula
morre. Toda a cidade sente-se aliviada e todos voltam aos mesmos costumes
anteriores: noras que não gostavam de cuidar de suas sogras voltam a reclamar,
negros que nunca tinham sido escravos voltam a mostrar superioridade sobre os
ex-escravos... mesmo Shadrack não se lembrava de que havia se esquecido de
alguma coisa. Tinha até prova de que uma vez recebera uma visita de uma garota
cujo sinto caiu enquanto fugia olhando em prantos para um crânio que jazia
perto do rio. Agora, pela primeira vez, não queria celebrar o Dia Nacional do
Suicídio. Quando chegou ao local onde iniciaria a marcha em busca dos que iriam
se suicidar, o povo já se aglomerava tentando destruir a barragem que eles não
tiveram permissão para construir. Embora não quisessem ir além dos limites,
acabaram se aglomerando e se atropelando. O túnel não terminado começou a
desmoronar e muitos morreram.
1965. Muitas
coisas mudaram. Pessoas negras trabalhavam e estudavam no centro da cidade e até
as prostitutas tinham uma vida melhor. Nel visitou Eva que indagou-lhe sobre a
morte do garoto no rio. Nel respondeu que Sula tinha sido a culpada, mas Eva
diz-lhe que Sula e Nel eram a mesma pessoa. Não havia diferença entre elas. Ao
voltar para casa, Nel percebe que durante todos aqueles anos ela não havia
sentido falta de seu marido Jude, mas de Sula sua amiga. Juntas elas tinham
sido uma única garota. Então chorou.
Como se
identificar com as personagens de Sula ou encontrar nelas algo de bom? Ou será
que elas representam exatamente nossas fraquezas? Ao terminar a história é
possível ficar em estado de êxtase. Nesta, como nas obras em geral de Toni
Morrison, há muita violência, mas não como luta pela sobrevivência, pelo
contrário, como autodestruição, além de uma sexualidade desvinculada do amor. É
difícil terminar a leitura satisfeito, pois vemos o feio transformado em belo:
em arte.Vale como documento histórico e assunto para reflexão, mas é uma
verdadeira ferida.